O abismo secundário

Um dia as formigas vão tomar conta do mundo. Ouvi dizer que o morador da casa ao lado teve o corpo encontrado numa rua de pouco movimento, às tantas horas do dia tal, e ele estava irreconhecível. Incrível como essa informação mexeu com minha consciência, triturou minha sanidade e deformou o organograma do meu imaginário. Eu sou um homem comum mas as ruas desta cidade me transformam, com suas surpresas factuais, numa espécie de fantasma de um sistema binário onde o fluxo da descontinuidade sempre jorra, imprimindo seu ritmo, sua constância, seu movimento, a defesa dos preceitos harmônicos do descontínuo.


Parei para acender um cigarro e as pessoas conversavam sobre o cadáver do meu vizinho. Havia muitas palavras escapando aleatórias e aquele falatório todo não fazia sentido para mim. As conversas demonstravam a inquietação dos falantes mas não significavam, não indicavam um contexto, eram soltas ao vento, como caixas vazias armazenando silêncios e errando o ponto que faz alvo para a sanidade, para objetividade. E todos falavam de uma dor que não se podia notar. Contavam como aquele homem fora morto mas, suas vontades de comunicação eram apenas barulhos, grunidos, balbúrdia para o elementar discursivo.


O meu vizinho fora morto a golpes de uma arma ancestral, parecida com um facão, uma espécie de espada viking. E não se sabe como aquilo se tornou possível, tendo em vista estarmos há séculos da ancestralidade bruta, rudimentar, feroz. Trata, o caso, no que diz respeito aos moldes utilizados por quem quer que o tenha assassinado, de um crime cruel. O temo descrito pelo perito policial, requintes de crueldade. Mas, de todos aqueles falatórios, só uma coisa me incomodava. E não era a forma como o meu vizinho perdera a sua vida. Me incomodavam as formigas que o devoraram. Pelas pontas de seus dedos, pelas suas pernas, braços e toda a sua face. Elas estavam arrancando pequenas partículas, pequenos pedaços para levar sabe-se lá para onde e para quê. Estavam desmaterializando a realidade objetiva e, dentro de minha consciência, recriando a materialidade do plano da subjetividade.

Eu sei que as formigas carregam tudo para seus buracos. Todos os fragmentos de um dia inteiro estão no alojamento desses quartéis de insetos dentro da terra. No subsolo da vida, há verdadeiros amontoados de sentimentos, dores, alegrias, que um dia foram carregados por essas operárias que ocupam tudo e estão em toda parte. As formigas ainda vão tomar conta do mundo. Ainda vão devorar o corpo bruto de nossas consciências.

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